Estudos sobre a amizade

outubro 31, 2011

Talvez por ser um filme cercado de expectativas de continuidade de um projeto de cinema, seja esse o que mais reações causou na Semana dos Realizadores. Ele cria um sistema de imagens muito áspero, que beira ao insuportável, e nisso está a força desse grande filme.

Inicialmente poderia se aproximar esse cinema, do trabalho que o cineasta americano John Cassavetes fez principalmente em filmes como “Husbands”e “Faces”. Personagens que parecem estar fora do sistema automático da atuação, improvisos e cenas em que do riso ao choro não há uma mudança no tom da cena. Mas em Cassavetes existe uma causa que aqui este cinema não tem. A grande investigação do cinema do Cassavetes é o amor. Não como sentimento, mas como uma onda (‘Love Streams’), como um encontro do meio orgânico, com um meio inorgânico. Um amor que não dependa dos órgãos, mas que passe entre os órgãos travando entre eles uma comunhão de almas. É possível que se aproxime do cinema do Joseph Losey, e sua imagem-pulsão. Personagens naturalistas que carregam uma pulsão elementar, porém no cinema do Losey (assim como nas bases da literatura Naturalista) há que se ter um meio derivado e aqui nesse filme, não há meios de derivação, pois não há cenários. Os quatro personagens nos lançam questões que não nos permite traçar uma psicologia eficaz  do sentido daquelas relações.

O encontro desse filme, se dá com a falta de causalidade que esses personagens são investidos. Não fica clara a causa que os faz tomar certas atitudes, que por vezes é tão incoerente entre um plano e outro. Aqui talvez haja um diálogo com o cinema do genial Michael Haneke. Tomemos os filmes “Funny Games”e “A Fita Branca”como exemplos. No primeiro de 1997, dois jovens entram na casa de uma família burguesa com o argumento de que precisavam de ovos. Dali em diante começa uma sequência de torturas à família sem maiores explicações. No mais recente há um acidente, em que um médico sofre um acidente com seu cavalo provocado por uma linha colocada entre duas árvores.  No acidente nós vemos tudo: a linha, o cavalo, o dono do cavalo, mas não conseguimos achar a causa, como em ‘Funny Games’ vemos o ovo, as torturas, mas não vemos a causa. Os personagens de ‘No Lugar Errado’ já habitam um mundo sem deus. As posturas e atitudes já estão desprovidas de princípios e valores. Utilizam a lógica de que não é amigo o suficiente aquele que tem pudor de colocar uma casca de banana para o outro. Não é à toa que todos os personagens constantemente se revezam caindo, ou deixando objetos cair. Sempre escorregando, ou fazendo o outro escorregar.

Uma das perguntas feitas aqui é se eles são amigos realmente. Talvez seja fundamental perguntar o que é uma amizade, ou que limites são suportáveis numa amizade? É nesse ponto que os diretores chegam à uma investigação intensa sobre os laços que unem as pessoas. Neste filme os laços são ambíguos, na sua maioria nocivos, mas sempre seguidos de uma reafirmação do pacto feito outrora. A cena que se entende como um estupro é modelar: Após o ato, em que tão cruel quanto o estuprador é a omissão dos amigos que observam tudo passivamente, os amigos se despedem, meio que se perdoando, meio que se cumprimentando, como se não existisse marca tão funda que uma amizade não suportasse. São amigos que estão ali mais pra denunciar o momento da queda, que para amparar. Que testam a um nível insuportável o pacto espiritual que uma amizade trava na sua essência.

Após dois filmes bem sucedidos e aceitos pelo público e crítica, o coletivo de diretores Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti da Alumbramento nos apresenta um filme que aponta para um lugar difícil, árido, habitado pelos artistas que buscam um pacto com o coração das coisas.

Filme: No Lugar Errado

Diretores: Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti

Duração: 70 Minutos

Ano de Lançamento: 2011

Cinema e Futurismo

outubro 31, 2011

Dentre as muitas hipóteses levantadas em “Os Residentes” uma parece ser a mais urgente. Thiago Mata-Machado coloca em cheque a questão do todo cinematográfico. O filme é um acúmulo de  sequência-esquetes que conta a história de um grupo de artistas que estão em exílio e sequestram uma artista. Esta investida do diretor nem sempre é feliz, momentos de grande pulsão e outros que beiram ao supérfluo, além da demarcação muito forte das cores. Mas o que o todo, e a investigação que o diretor quer chagar é em que lugar nós devemos voltar pra dar um passo, de fato, à frente?

O diretor cria um diálogo com a idéia central das vanguardas. De certa forma ele se pergunta no filme que meios nós temos pra provocar uma nova ruptura na experiência da existência, uma experiência que faça o destino das coisas mudar seu rumo? E talvez aí o vença um pessimismo da conclusão de que talvez tenhamos chegado tarde demais. Os personagens são como os mímicos da sequência final de “Blow Up”de Michelangelo Antonioni: eles tem o gesto, mas não tem a bola.

A tensão entre um certo ‘luto das vanguardas’ e a necessidade vital de chegar à diferença pura consegue criar momentos incríveis. A cena do casal conversando sobre a relação, sobre o amor, nos coloca duplamente a mesma questão da representação: Qual a validade da encenação tanto pra arte quanto pro amor? (você acha que eu sou uma encenação pergunta a atriz). Em um outro momento em que o personagem mais velho conta sobre a experiência de Robespierre antes da revolução, nos coloca uma questão vizinha a anterior: Como o artista pode fazer para tornar sua vida um acontecimento? Como fazer com que até na morte sua vida possa ser potente? Thiago se mete aqui num vão muito cruel, entre as ruínas e a morte.

A postura revolucionária do filme, ilustrada na frase ‘a estética é a ética do futuro’, toma por vezes um tipo de marxismo clássico e por vezes um do 18 Brumário a revolução como uma eterna conspiração.  Há nesse discurso o velho que mantém o rigor iluminista, o jovem casal sessentista, a criança que carrega no gesto puro a utopia. Um filme que tem a ira da pulsão criativa, mas que se aliena nas próprias tensões.

Por André Félix

Filme: Os Residentes

Diretor: Thiago Mata-Machado

Duração: 120 Minutos

Ano de Lançamento: 2011

A Vocação da Eternidade

outubro 24, 2011

O romancista Alexandre Dumas publicou uma carta em meados do século XIX defendendo o poeta Gerárd Nerval das acusações de louco. Mais que defender, ele exalta as qualidades de Nerval e faz uma pergunta fundamental: de onde nasce a sua criação? Nerval começa o livro “As Filhas do Fogo” respondendo a essa pergunta e pedindo a ajuda de Dumas para lidar com um personagem. Um ator que se apaixonara de tal forma pelo personagem de Nero, que intentava queimar todo o teatro com o público dentro. É  o ator que chegou, enfim a ‘vocação da eternidade’ da arte.

O Filme de Marcelo Grabowsky nos propõe um olhar para uma peça. Uma peça encenada por 24 horas seguidas (o diretor propôs aos seus atores que não saíssem de seus personagens em nenhuma dessas horas). Há uma personagem. Uma judia, que a partir do seu testemunho nos informa que sofreu as maiores torturas num campo de concentração. Há uma atriz que repetidas vezes faz o mesmo papel por 24 horas. Há um público que se transforma em personagem e está relegado ao papel de eterna realidade. E há um filme que mais do que refletir sobre a representação, quer olhar pros curtos-circuitos que existem no estatuto da imagem e tirar daí uma imagem pura.

O filme inicialmente pode ser comparado ao ‘Moscou’ de Eduardo Coutinho, pela proposta e pela liberdade que se permite no que se refere a sua misé en scene. Mas Marcelo aqui, não tem por objetivo estabelecer um jogo de representação, ou melhor, aqui ele escolhe perder esse jogo, e quem emerge é o falso em sua potência. O filme, baseado na peça de Peter Weiss, ‘O Interrogatório’,  acompanha a atriz Carla Ribas no palco e nos bastidores. Nos dois espaços é a personagem da Testemunha Judia que está ali. O primeiro grande curto circuito está no momento em que a atriz/personagem desce do palco e uma amiga da atriz vem cumprimentá-la enquanto ela mantém o semblante impassível. A amiga fala: “Não vai pirar, isso é só teatro”. A personagem não entende a língua da amiga da atriz. Ela estava ali no que os estóicos vão chamar de uma outra duração. Ali ela não estava existindo, mas coexistindo. O que é um ator, senão aquele que tem as chaves da coexistência, não somente dos espaços, mas das durações.

A repetição no filme é captada de forma tão poderosa que chega em momentos a colocar em suspensão inclusive os momentos em que a atriz está nos bastidores. Tudo é arrastado com uma força centrífuga, em que todos os elementos ficam submissos ao olhar da personagem. Objetos, sentimentos, pequenos gestos silenciam frente à manifestação dessa comunhão espiritual, absurda e forte que, usando as palavras de José Saramago, talvez nos faça crer que é possível, pelo menos por alguns instantes, vencer a morte.

No instante em que a personagem canta uma música do folclore judeu, nos momentos de cansaço, nas vacilações do texto e na tirania que a realidade impõe por fim, há uma câmera que testemunha com o mesmo vigor e a mesma complacência. Quando os atores começam a vencer as personagens, a câmera continua. E quando os atores vão se confraternizar na praia a câmera também está, pois a perplexidade do olhar é de um filho para uma mãe. Que as vezes olha com os olhos de um bandido e por vezes de um conterrâneo de alma. Um filme para ser amado.

outubro 23, 2011

Nas entrevistas concedidas para a divulgação do filme, Ana Rieper deixa claro: este não é um filme sobre gênero musical, mas sobre  o amor. No entanto falar sobre o brega nesse momento da história da canção  brasileira (em via de quase extinção) é, inflexivelmente, tocar na questão mais difusa da nossa cultura popular.

O brega não pode ser considerado um gênero musical em si, assim como a bossa nova não pode. Não há dados estéticos, musicográficos que nos permitam definir que ali está se tocando brega. Os flertes com o bolero, que sofreu a primeira grande reação contrária por parte dos defensores da ‘grande música brasileira’, e com um tipo de música feita na região caribenha além da música romântica são as bases musicais da primeira geração do que hoje já chamam de ‘velha guarda do brega’ que teve menos uma postura de resistência e mais uma tentativa de se mimetizar, por muitas vezes fracassadamente, artistas de grande projeção popular. O que torna mais difusa a discussão em torno do brega é que o que está em jogo não é a música, mas um tipo de atitude, que não utiliza mais o operador político partidário, nem o operador da conservação de uma tradição, ou seja,  brega está num lugar que não é a tradição nem a vanguarda, não conserva, nem rompe. Além disso, desde que se estabeleceu as regras de equidistância da inteligência pós-moderna, o  brega se tornou justificado por se alinhar com a idéia de que o belo é uma construção discursiva e de uma total imediatização das instâncias da criação. Por estas razões “Vou Rifar Meu Coração” não é um filme só sobre o amor, mas sobretudo, sobre  toda uma economia da canção.

O filme deixa no caminho pistas para algumas questões, mas não as aborda de forma clara. Um exemplo  é o tema dinheiro. De como esses artistas que tem uma série de ações e pesquisas em torno do gosto popular, constróem uma plataforma auto-sustentável de produção/distribuição e o quanto isso  é fundamental para todo o processo de criação. Isto é tocado de longe por artistas como Agnaldo Timóteo que declara que sempre andou em ‘carrão’ e em toda a estrutura de show e de alcance de público de Wando e Amado Batista.

No que se refere à discussão sobre o documentário em si, o filme não acrescenta muito. Pode-se fazer um paralelo com o também recente “Canções” de Eduardo Coutinho. Porém o que Ana Rieper parece ignorar é que este é um tipo de documentário que pertence a um lugar onde o Coutinho já apagou a luz e já fechou a porta pelo lado de fora. Um personagem falar sobre um assunto, seja ele qual for, já não basta. Soa como a arrogância de se falar em nome de alguém.

Uma das escolhas que a diretora precisou fazer foi a de conservar ou não Lindomar Castilho como personagem do documentário, mesmo que este não tendo aceitado tocar no tema do assassinato da esposa cometido pelo proprio. O filme perde em honestidade com o público e consigo próprio. Não há como expôr  alguém que já está judicialmente exposto. A questão é que além de não tocar no assunto a diretora conotativamente monta uma sequência em que Lindomar fala de crime passional, paralela a uma música do Amado Batista em que a trama é de um marido que mata a mulher e o amante.

Fora isso o filme tem as músicas, e um tipo de sensação de que para o brega, nos fica mais o filme que nos falta.

Por André Félix

Filme: Vou Rifar Meu Coração

Diretora: Ana Rieper

Duração: 76 Minutos

Ano de Lançamento: 2011

Cidades-Panorama

outubro 21, 2011

Algumas interessantes reflexões já foram feitas sobre Los Angeles e seus arranha-céus espelhados e como a tradição de estúdios de cinema influenciou nesse fenômeno urbano. Liga-se a tradição dos parques-panorama do  século XIX nos Estados Unidos à força do cinema de entretenimento que os americanos realizaram no século XX. Exagero ou não, o que interessa ressaltar é que o cinema que Hollywood produziu e produz está dentro de um projeto político do olhar. Em tempos de campanha para que a cidade do Rio de Janeiro seja reconhecida pelos seus e pelos outros como uma cidade cinematográfica, “Praça Walt Disney” se torna eficaz para a questão sobre o que está em jogo no país nesse momento.

Como já destacado em outros textos, a lá Jacques Tati, Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro orquestram uma série de eventos diversos de um bairro de Recife. Com a picardia conhecida dos pernambucanos, o filme desmonta a soberania da crença de que agora tudo vai bem. Para tal, a cinematografia atribuída à cidade tem que mudar de função. A cidade não pode ter aqui a função de cidade, mas de parque de diversões. O filme toma duas vozes distintas mas complementares. Vemos um balé de imagens do cotidiano da cidade, com trilhas parecidas com as de Lalo Schifrin, ou Tchaikovsky.  Em paralelo,  imagens de fotos antigas no mesmo eixo e enquadramento dos locais novos. Ele derrete de forma sutil a empáfia que vem da ‘síndrome de vira-lata’. Uma tal que mancha tudo o que toca, e transforma  em aliados  cegos e  caolhos.

A cena do velho remando e puxando à toa um amarrado de brinquedos infláveis foi o plano mais bonito da noite. Épico e duro, deixa claro que não se pode confiar nem na nostalgia, nem no futurismo. Para o Recife e para o Brasil é preciso um outro caminho.

Por André Félix

Filme: Praça Walt Disney

Diretores: Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro Brasil

Duração: 21 Minutos

Ano de Lançamento: 2011

outubro 21, 2011

 

Postarei a partir de hoje textos sobre os filmes da Semana dos Realizadores 2011. Os filmes tem exibição no Unibanco Arteplex entre 20 e 27 de outubro. A idéia é postar os textos referentes aos filmes do dia anterior.

Backlands

outubro 20, 2011


   

“Lança teu pão sobre as águas porque depois de muitos dias o acharás” (Eclesiastes 11:1)

Talvez seja o sertão ainda um lugar ‘atrás da cidade’, ou só uma imagem descolada e sem condições de se reconciliar, mas ainda sim, uma imagem que pode, definitivamente, atravessar. Neste filme, o sertão é o mineiro, que de imediato sofre a tentação de ser uma ilustração do universo do Guimarães Rosa. Aqui também há o velho Guima, mas há  um filme que busca ser, também, uma outra coisa.

Mais que um lugar, Minas é um jeito de descobrir o Brasil. Foi assim no barroco mineiro, como é agora nesse Girimunho de Helvécio Marins Jr. e Clarissa Campolina, diretores que usam a fórmula de Garcia Marquez  pra chegar na travessia: é preciso não ter medo de vacilar. Bastu, que poderia perfeitamente ser Úrsula Buendía, ao perder o marido tem que resolver uma questão:  lidar com a ausência/presença dele.  Seu desejo é que isso se consuma de forma plena. Mas como desligar destinos que há tanto tem sido ligados e tirar disso uma potência? Parece ser esse um dos nós que o filme investiga.

Bastú sabe que a morte é só um evento e, como um evento, é insuficiente para fazer que uma imagem se desprenda. Entre morte e vida há aí uma vacilação sem desespero nem intermediários. Para Bastú o sobrenatural é abarcado pelo real, faz parte da realidade que é encarado sem peso, tanto por ela, quanto por sua amiga Maria do Boi. Existe aqui um princípio bressoniano que nos indica o sistema em que se encontram esses personagens: elas não procuram, elas acham. Não é pela palavra que elas vão chegar ao seu destino, mas pelo ato. Nem Bastú, nem Maria do Boi esperam uma revelação na, ou pela palavra, mas pela determinação do espírito.

Não é por acaso que o  filme começa e termina com apresentações musicais. Em toda a sua extensão, Girimunho é um filme para ser ouvido. Helvécio e Clarissa compõem uma linha diferencial na diegese para o áudio. Na oficina de Feliciano se estabelece de forma clara essa composição: a ausência do dono em imagens, mas a sutil presença nos sons do trabalho cotidiano. Assim como para o Chico Buarque “o pai era um barulho de máquina de escrever”, para Bastú o marido se tornou um barulho de ferramentas na oficina, como também acontece quando se sugere pela primeira vez a morte de Feliciano e os sinos tocam no áudio. Essa modulação, que se atribui tanto ao cinema oriental recente (Hou Hsiao-hsien, Jia Zhang Ke), é um recurso antigo utilizado no cinema clássico americano (John Ford em My Darling Clementine), mas que aqui, se aproxima mais de um tipo de realismo fantástico latino-americano feito na literatura.

É no rio que vem a cena mais expressiva desse belo filme. Bastú leva as roupas de Feliciano e as solta no rio. Como todo processo de desprendimento, algumas roupas afundam rapidamente e outras continuam boiando, ilustrando um dos princípios da existência humana mais fundamentais: é preciso perder a sua vida pra conseguir acha-la. Um filme que massacra a melancolia mineira, e torna potente o ideal de beleza da arte mineira (que segundo o compositor Thiago Amud quando quer manda na beleza desse país) e revela pro próprio cinema, um novo caminho pra se pensar.

Por André Félix

Filme: Girimunho

Diretores: Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr.

Ano de Lançamento:2011

Duração:90 Minutos